REFLEXÕES

A tragédia de Ondina e a onda que nos chacina

A tragédia teatral, a grosso modo – de forma simplória e superficial –, é a representação de alguma falha moral que acarreta consequências catastróficas, ou trágicas; daí a adjetivação que se tornou usual. Há algo moralizante, de uma forma geral, por trás das tragédias. Se você ambicionou poder em excesso, se cultivou o ódio a um clã, classe, raça ou família rival, se você colocou seus interesses particulares acima das leis e do país, estado ou cidade, seu fim será trágico.

Para que tudo isso tenha efeito, é necessária uma identificação. Uma tragédia que castigue uma tribo que corta o clitóris e os pequenos lábios das mulheres nos deixará com aquele sentimento de justiça, até mesmo vingança, mas tratando-se de outra cultura, não gerará em nós uma identificação que nos faça repensar nossos atos. Será? Talvez, não. Se essa tragédia utilizar-se desse ato abominável para, no fundo, ser uma metáfora, alegoria de algo relacionado à nossa própria cultura, então, através do distanciamento, veremos no diferente o mesmo problema que o nosso, em outros matizes e valores. Com isso, teremos uma identificação por associação, projeção, comparação.

O nefasto acontecimento da última sexta-feira, dia 11 de outubro, gerou um sentimento de indignação, repulsa e ódio nas pessoas, pela forma como ocorreu e por como as evidências vão se encaixando. Não posso ser leviano em fazer um pré-julgamento. Cabe à justiça, aos peritos e aos laudos um parecer final. Dependendo do resultado, cabe à sociedade cobrar que o ato, culposo ou doloso, seja penalizado como manda a lei. Cabe à lei que seja cumprida a justiça que a sociedade, repetidamente, vem cobrando nesse país.
Contudo, há um aspecto – para além da tragédia dolorosa, em si – que demonstra, nas pessoas, um afastamento que me parece indevido. Indevido, inapropriado e, por isso, alarmante.

A abominável morte desses dois jovens parece-me o paroxismo de uma doença que devasta Salvador, junto com sua alegria, sua inércia e seu provincianismo. Venho escrevendo artigos[1]sobre nossa cidade, procurando entendê-la através da identificação de algumas de suas mazelas. Mais uma, agora, talvez uma consequência e soma de todas as outras, emerge de tal triste notícia.
Estamos violentos. Agressivos e mal-educados, impacientes e descorteses, deselegantes e indelicados como, desde que me entendo por gente, eu nunca vi. O trânsito de Salvador revela o pior da gente, é um reflexo da barbárie a que a cidade chegou. Há três anos escrevi sobre isso, e resolvi reproduzir o artigo Trânsito e cidade novamente, aqui, para não precisar repetir certos pontos.
Nossas manifestações de repúdio ao desastre ocorrido na manhã da última sexta-feira são válidas. Todo desastre merece repúdio e indignação. Contudo, é preciso que percebamos que somos um pouco o ocorrido, em doses bem menos desastrosas e trágicas.
Nosso comportamento em lugares públicos, seja à frente de um volante, ou numa fila, andando na rua ou numa sala de cinema, tem sido cada vez mais violento, egoísta, descortês. Entretanto, atrás de um volante estamos em nossos tanques de guerra, nossas casamatas; em nossas motos estamos montados em nossos cavalos, com nosso capacete tal qual um cavaleiro medieval.
Falsamente protegidos do resto, somos prepotentes, arrogantes, violentos, impacientes, mal-educados, descorteses e não respeitamos regras de trânsito, de convívio e de humanidade; nem isso.

Em doses bem menos trágicas, agimos como no acidente, em diversas situações. Vingativos ou imprudentes, arrogantes ou espertos, todos nós vimos sofrendo de uma irascibilidade, intolerância e impaciência que é um reflexo da selvageria em que nossa cidade chegou.
Desde sexta-feira, venho mais prudentemente e cautelosamente dirigindo pela cidade, assumindo o papel de observador de nosso trânsito, e todos os traços acima são comumente percebidos ao redor da cidade de forma mais aguda, para meu desespero e espanto.
Têm sido recorrentes adjetivações altamente agressivas à causadora da morte dos dois irmãos. Estamos sempre prontos a julgar e ofender todos os que estão sob os holofotes da imprensa, todos os que participam de situações revoltantes, seja de violência, corrupção ou roubo: mesmo em casos onde não há provas, quando somos conduzidos pela mídia. A despeito do merecimento de muitos destes acima, há, em nossa ação, uma espécie de afastamento daquela realidade. Assumimos a postura de honestos e pacíficos, e condenamos seres que vivem noutra dimensão de comportamento. Será, mesmo, que nós somos honestos e pacíficos sempre, em todos os momentos de nossas vidas? Estamos, realmente, noutra dimensão de comportamento? Provavelmente, muitos de nós jamais matarão, desviarão milhões do erário, assaltarão a mão armada alguém, estuprarão uma pessoa. Contudo, a ocasião faz o ladrão, o hábito faz o monge e muito do que povoa nossa mente, de mais abjeto e condenável, talvez pudesse tornar-se realidade em determinada instância, em certas oportunidades. Afinal, quantos não pensam “tem que matar, mesmo”, “se fosse eu, passaria por cima”, “eu, no lugar dele, teria roubado, também, todo mundo faz”, “isso aqui não é nada comparado ao que fazem os políticos”, e assim perpetuamos, nós mesmos, os atos que condenamos; no desrespeito à lei, às mulheres, aos diferentes, ao espaço do outro, aos nossos limites, e por aí vai.

A tragédia de Ondina foi algo que não devia ter acontecido, nem deveria voltar a acontecer. Contudo, não será com nosso afastamento cego da situação, colocando o ato como algo intangível e dissociado de nós, que ele deixará de acontecer. É recorrente, quando vemos um menino que atira nos colegas, nalgum colégio estadunidense, analisarmos os “americanos”; quando vemos o apedrejamento de uma mulher ou gay, analisarmos os “muçulmanos”, ou “africanos” (mais generalista, impossível). E quando o ato pertence à nossa realidade?
Assim como na tragédia teatral, precisamos perceber na identificação com o ato trágico uma forma de nos percebermos e nos alertarmos. É preciso que nós, soteropolitanos, percebamos na desgraça ocorrida em Ondina um reflexo de nossa barbárie, o paroxismo de nossa selvageria, o evidente declínio de cidadania, humanidade, educação e gentileza em que a cidade chegou.
Há, na falta de educação, cultura e civilidade, uma onda que nos chacina. Não podemos deixar que as tragédias sejam recorrentes e, para isso, é preciso olharmos para o próximo e para nós mesmos. Que possamos perceber um pouco de nós na desgraça que criticamos, e que possamos refletir e transformar nossa realidade. Como diria Mahatma Gandhi: “seja a mudança que você deseja ver no mundo”.

Gil Vicente Tavares

Encenador, dramaturgo, compositor e articulista. Doutor em artes cênicas e diretor artístico do Teatro NU.