REFLEXÕES

Não me analisem, por favor

Ouso afirmar, ameaçada de ser desmentida, que a verdadeira democracia instaurou-se há muito tempo nas relações entre pais e filhos.

Refrear, proibir, impedir e intervir tornaram-se comportamento evitado por pais, professores e outros adultos, pois são considerados agressivos.

Os adultos titubeiam diante da possibilidade de gerar neuroses, marcas de infelicidade. Na verdade, quase sempre os adultos detêm o poder de veto, mas relutam em usá-lo. Se, na política e nas relações de produção, o autoritarismo vai sendo regulado tanto por leis quanto por hábitos e costumes, no confronto entre as gerações, uma certa liberdade de troca vem sendo conquistada.

Nas relações transgeracionais, em que os pais têm medo de sacrificar a liberdade dos filhos, não é o Estado que exerce o maior controle. O comportamento individual nas relações pessoais é quase sempre a decoração das regras do Estado. Estão banidos a crueldade (entre os seres) e o abandono (do lar, da criança, do emprego). Fica regulado o direito de ir e vir em todas as instâncias da vida. Cada família, agremiação ou nação tem suas regras decretadas ou sancionadas pelo uso.

O direito à privacidade e aos segredos pessoais ou institucionais vem sendo abalado por incessantes ataques das novas tecnologias, especialmente da informática. Há 60 anos, não havia jeito de um pai saber o que o filho tinha ouvido no rádio enquanto os adultos estavam ausentes. Hoje, o maldito disco rígido conta tudo a todos.

Naquele mesmo tempo longínquo, qualquer criança freqüentava dois, três ou mais ambientes que, apesar de se comunicarem, não estavam voltados à observação de minúcias do seu comportamento.

Uma vez escolhidos a escola, o clube e o parque, instaurava-se uma relação de confiança, e a criança era livre para ser o que quisesse dentro de normas gerais de respeito e conduta, sem que olhares bisbilhoteiros ficassem atravessando as membranas da privacidade.

A criança reprimida e dirigida tinha uma compensação muito rara e necessária: a privacidade. “Ninguém tem de saber como eu sou na casa do Pedrinho, a não ser que eu transgrida regras gerais válidas para todos os ambientes.”

Eu sinto como uma perda de qualidade de vida a sistemática invasão de privacidade das crianças e dos jovens, que ficam sem direito de escolher livremente e de esconder seus pequenos segredos.

Essa perda, que é subjetiva, também deixa de desenvolver inteligência e capacidade de decisão. A possibilidade de uma criança rebelde na escola poder se dar ao luxo de descansar de sua casa – escolhendo um grupo de colegas bem diferentes dos irmãos – é pequena. O comportamento das crianças, dissecado em longos relatórios, destrói a privacidade.

Pode haver muitos motivos pelos quais a reunião de pais e mestres se faça necessária. Mas, se os sentimentos e as formas de sociabilidade não contaminassem os outros ambientes, a criança ficaria contente, tendo ciência de que o seu jeito de ser na escola não é um livro aberto – excluindo-se a aprendizagem de aptidões.

Os pais falam de seus filhos aos professores, que falam aos pais do comportamento escolar de seus alunos. Os meninos não gostariam que uma discussão sem conseqüências que tiveram com colegas fosse tratada num jantar de família. Isso para não mencionar quando se discute com a orientadora da escola os problemas da família.

Essa permeabilidade funciona como censura. Falo com a voz das crianças: “Deixem-me competir na escola para derrotar meus irmãos em casa sem que eles saibam que eu estou treinando – aliás, nem eu sei que estou treinando”; “Deixem-me aprontar em casa para brilhar com a turma do clube”; “Deixem-me ser opaco. Que os adultos que me cuidam não me tornem transparente a todos. É um pedido que eu faço a pais, professores e mestres”.


ANNA VERONICA MAUTNER , psicanalista da Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo, é autora de “Cotidiano nas Entrelinhas” (ed. Ágora)
amautner@uol.com.br